Guilherme Maia de Loureiro[1]

Resumo: Através do recurso a uma habilitação para o Santo Ofício de um primo do Padre António Vieira, que se acredita ser inédita, surgem novas considerações sobre a sua ascendência e limpeza de sangue, que sugerem fortemente que teria, de facto, antepassados cristãos-novos.

Abstract: The analyses of what is believed to be a yet unknown document, Father António Vieira´s cousin´s qualification file for the Holy Office, have taken to new considerations on the Father´s ancestry and blood purity that suggest that he had, indeed, New-Christian ancestors.  

O processo inquisitorial do Padre António Vieira decorreu entre 1663 e 1667 e implicou as acusações de proposições heréticas, temerárias, malsonantes e escandalosas. Os processos por proposições heréticas são geralmente interessantes porque é comum conterem discussões de ordem teológica entre os réus e os qualificadores do Santo Ofício, mas, de entre estes, merece especial destaque o do Padre António Vieira, pela particularidade das suas heterodoxias e pela forma inteligente e arguta como o réu respondeu aos inquisidores. O processo está disponível em linha no sítio do Arquivo Nacional da Torre do Tombo[2], foi já integralmente transcrito e publicado[3] e tem possibilitado inúmeros estudos que tratam os mais diferentes assuntos que são abordados ao longo das muitas centenas de fólios que o compõem4.

Entre estes assuntos está o das suas origens familiares, que pode ser abordado sob duas perspectivas: a do estatuto socioeconómico dos ascendentes mais próximos do sacerdote, no sentido de se perceber qual seria a sua posição relativa na complexa hierarquia social da época; e o da possibilidade de o Padre António Vieira descender de uma ou mais das então chamadas raças infectas (judeus, negros e mouros), ou seja, a questão da sua limpeza de sangue. É apenas a esta segunda parte da questão que nos pretendemos ater.

Os mais destacados biógrafos do Padre António Vieira dos séculos XX e XXI abordaram a questão da sua limpeza de sangue, sendo de destacar a atenção que lhe dedica António Baião no seu artigo O sangue infecto do P.e António Vieira, publicado em 1929 na revista da academia conimbricense O Instituto5; e o que sobre o mesmo tema escreveu João Lúcio de Azevedo que, na segunda edição da sua História de António Vieira6,  acrescenta os contributos de Baião ao seu extenso capítulo sobre as origens e parentela do sacerdote. Mais recentemente, Ronaldo Vainfas, ao traçar o perfil do Padre António Vieira7, analisou criteriosamente e reinterpretou parcialmente as contribuições dos seus antecessores a este respeito e chamou a atenção para alguns pormenores relevantes (a que faremos alusão adiante), mas nada de realmente definitivo acrescentou ao que já se sabia sobre a possibilidade de o Padre António Vieira ter sangue infecto.

Aquilo em que todos estes autores coincidem é no facto de concordarem que se pode afirmar com alguma segurança que a avó paterna do Padre António Vieira era índia ou mulata, porque assim o declararam duas testemunhas que foram  interrogadas pelo Santo Ofício a este propósito, D. Francisca de Castro, condessa de Unhão, e Soror Margarida do Espírito Santo (D. Margarida de Vilhena, antes de professar); e também porque foi esse o motivo invocado pela Mesa da Consciência e Ordens para travar a profissão na Ordem de Cristo do irmão e do sobrinho do Padre António Vieira.

No processo de habilitação do irmão, Bernardo Vieira Ravasco, apurouse que a sua avó materna foi nesta cidade [de Lisboa], padeira dos Religiosos de São Francisco e o avô oficial de fazer armas, e da avó paterna

(que foi da Editora, 2011. pp. 151-168.5 BAIÃO, António, O sangue infecto do P.e António Vieira – Conseqüência dos inquisidores terem razão ao dizer que, procedendo contra êle, procediam contra pessoa de cuja qualidade de sangue não constava ao certo, in O Instituto – Revista4 Um muito bom enquadramento geral do processo encontra-se em PAIVA, José Pedro, Revisitar o processo inquisitorial do padre António Vieira, in Clero, Doutrinação e Disciplinamento, Revista Lusitania Sacra, n.º 23, Lisboa: Universidade Católica Scientifica e Literária, Vol. 77, 4ª Série, Volume 6, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1929. pp. 1-31.

  • AZEVEDO, João Lúcio de, História de António Vieira, 2ª ed., Lisboa: Livraria Clássica, 1931.
  • VAINFAS, Ronaldo, Antônio Vieira, Colecção Perfis Brasileiros, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

obrigação da Casa de Unhão) jurara a Condessa que era de cor parda[4]. Já no processo do sobrinho, Gonçalo Ravasco Cavalcanti e Albuquerque, apurou-se que nas várias tentativas para identificar a sua ascendência uma testemunha depôs ouvira dizer a seu pai que o P.e António Vieira, irmão de Bernardo Vieira, era filho ou neto de uma escrava mourisca[5]. Dados estes testemunhos e a interpretação que deles fizeram os oficiais da Mesa da Consciência e Ordens, não seria razoável afirmar outra coisa que não fosse que o Padre António Vieira tinha, de facto, sangue infecto por via da sua avó paterna que seria, de acordo com diferentes versões mulata, indiana[6] ou mourisca.

Mas resta uma dúvida especialmente relevante se tivermos em atenção a obra do Padre António Vieira e a sua benevolência para com os cristãos-novos, que passa por saber se, por qualquer outra via, o famoso sacerdote teria ascendência judaica. António Baião e João Lúcio de Azevedo não se pronunciam definitivamente a este respeito, mas Ronaldo Vainfas afirma que o Padre António Vieira:

“Talvez fosse também neto de cristãos-novos, por via materna, embora o Santo Ofício não tenha apurado nada a esse respeito. Isto porque Antônio Vieira aprendeu a ler com sua mãe, Maria de Azevedo, padeira dos franciscanos de Lisboa. Apesar de ser padeira, a mãe de Vieira sabia ler e escrever, qualidade rara entre mulheres e homens da época, com exceção dos cristãos-novos. Uma padeira que sabia ler e escrever a ponto de educar o filho, como ele mesmo admitiu, deve ter nascido em família apegada às letras, como eram as famílias de cristãos-novos (…) o facto de a mãe de Vieira ser uma padeira letrada sustenta a conjectura de que tinha parte de cristã-nova. Nos dois costados avoengos de Vieira havia bastardia e “nódoa de sangue”, por isso ele sempre evitou falar das avós. A avó mulata, mãe de seu pai, fora amante de um criado da casa de Unhão, Baltazar Ravasco. A avó materna provinha de família cristã-nova.”8

Embora concordemos com a relevância que tem para a questão o facto de a mãe do Padre António Vieira saber ler e estranhemos o descaso de outros ilustres autores relativamente a esta informação, parece-nos exagerado usá-la como prova definitiva de que Maria de Azevedo era de origem cristã-nova. Note-se, aliás, que o autor começa por afirmar que talvez o Padre António Vieira tivesse sangue cristão-novo por via da sua avó materna, para dois parágrafos a seguir afirmar cabalmente que esta provinha de família cristã-nova sem que, entretanto, tenha acrescentado qualquer prova ou documento adicional que sustente melhor essa afirmação9.

A questão que se coloca é, pois, saber se é possível esclarecer algo mais sobre a ascendência materna do Padre António Vieira e acrescentar novas provas ou indícios fortes de que tivesse alguma origem cristã-nova. Para isso, teremos de revisitar o processo inquisitorial do Padre António Vieira para dele extrair apenas o que for especialmente relevante, evitando referências feitas por outros autores e que, como tal, seriam redundantes.

Devemos salientar, em primeiro lugar, que a década de 60 do século XVII foi uma de especial intensidade na perseguição a cristãos-novos judaizantes e que os inquisidores eram mestres na arte de identificar as redes familiares em que estes se moviam. Por isso, e dadas as posições doutrinárias do Padre António Vieira, que eram bastante benevolentes para com os cristãosnovos, seria de esperar que a inquirição sobre a sua genealogia fosse feita com todo o rigor previsto no Regimento do Santo Ofício, mas percebemos hoje que a mesma maestria com que Vieira conseguiu arrastar o seu processo sem nunca se comprometer com qualquer heresia, foi usada deliberadamente para dificultar esta inquirição genealógica e, assim, ocultar a sua ascendência.

Sobre este assunto, no início do seu processo, em 1663, foi o próprio Padre António Vieira que afirmou ser:

  • VAINFAS, Ronaldo, cit., pp. 24-25.
  • O mesmo tipo de dedução precipitada foi usado ao longo de décadas por alguns outros autores de destaque que se dedicaram à questão dos cristãos-novos no Brasil, como José Gonçalves Salvador, Anita Novinsky e Charles Boxer. O nosso saudoso amigo e confrade Marcelo Bogaciovas cedo compreendeu o quão nefasto isto fora em termos historiográficos e dedicou décadas do seu percurso de investigador a tentar apurar, através das fontes primárias apropriadas, quais das deduções tinham sido certeiras. Há que continuar este caminho correcto, porque há ainda muito por fazer neste domínio.

“(…) cristão-velho, sacerdote religioso professo da Companhia de Jesus de idade de cinquenta e cinco anos natural da Cidade de Lisboa da rua dos Cónegos, freguesia da Sé, e morador no Colégio da Companhia desta Cidade. E que seus pais chamam Cristóvão Vieira Ravasco, fidalgo da casa de Sua Majestade natural da Vila de Santarém e Dona Maria de Azevedo {cristãos-velhos, ela}, natural da Cidade de Lisboa não sabe de que freguesia, moradores na Cidade da Baía de Todos os Santos Estado do Brasil. E que a seu avô paterno chamaram Baltazar Vieira Ravasco, cristão-velho que não tinha ofício natural e morador da Vila de Moura segundo seu parecer, ora defunto, e que a seu avô materno chamavam Brás Fernandes de Azevedo, cristão-velho, homem nobre, natural e morador da Cidade de Lisboa não sabe em que freguesia, nem como chamavam a sua avó materna, nem donde era natural, e moradora, por serem defuntos há muito anos.”[7]

Ou seja, o Padre António Vieira ocultou os nomes e ocupações das suas duas avós e optou por realçar a fidalguia do avô paterno e a nobreza do avô materno. Em 1666, o Padre António Vieira foi novamente interrogado relativamente à sua genealogia e, desta feita, acrescentou que:

“(…) o dito seu pai, que ainda é vivo terá hoje de idade noventa e oito anos, e a mãe se fora viva, tivera agora oitenta e dois, do que bem se deixa ver, como não será possível, que possam achar-se pessoas, que conhecessem de vista os ditos seus avós paternos, e maternos, nem ele declarante sabe, ou tem notícia de quem deles a possa dar, exceto dos paternos, Dona Margarida de Vilhena, freira dominicana do Convento d’Anunciada de Lisboa (…) e dos maternos {e da mesma sua mãe, a dará} Manuel Mendes de Araújo, que lhe parece é escrivão do Cirurgião-mor (…) o qual havia sido casado com uma tia materna dele declarante chamada Vicência Manuel, e depois casou com outra mulher (…).”11

Foi-lhe ainda perguntado se tinha primos ou parentes por via paterna e materna que pudessem acrescentar algo sobre os seus antepassados, ao que respondeu que:

“Não sabe, nem tem notícia alguma de que tenha {tios, primos, ou} parentes pela via paterna, e só {se lembra} ouviu por muitas vezes dizer a seu pai, que os parentes, que tinha eram em Moura da família dos Ravascos. E também ouviu ele declarante dizer na vila de Torres Vedras haverá vinte e três anos, ao Prior da mesma vila, cujo nome, digo ao Prior de São Pedro da mesma vila cujo nome não sabe, e só lhe parece o chamavam Fuão Teles, que era parente dele declarante pela via dos ditos Ravascos de Moura, sem lhe declarar em que grau, nem que razão tinha de o saber. E que por parte da dia sua mãe, não sabe que tenha neste Reino, nem fora dele outro algum parente mais, que Gonçalo Serrão de Azevedo, que vivia de sua fazenda, e era Capitão da Infantaria, morador na Vila do Fundão, ora defunto, do qual ficaram alguns filhos, não sabe quantos, nem como os chama, moradores na mesma vila, e o dito Gonçalo Serrão de Azevedo era sobrinho da mãe dele declarante, filho de uma meia[8] irmã da mesma, cujo nome {e do marido} não sabe, nem donde ela foi natural, e moradora, por ser falecida há muitos anos. Perguntado se ouviu dizer à dita sua mãe, ou a outrem alguém, em que rua de Lisboa, ela nascera, e se criara, em que igreja fora batizada, e recebida com o dito seu pai, e que pessoas intervieram, ou assistiram no casamento, ou disso poderão dar notícia. Disse que não sabe coisa alguma, nem ouviu dizer, de todas as que se contêm na pergunta, nem de cada uma delas em particular”.[9]

As informações prestadas pelo Padre António Vieira são escassas, dispersas e genéricas. Essa escassez de informações surpreende, porque é sabido que a sociedade portuguesa do século XVII vivia obcecada com genealogia, uma vez que a ascendência e a parentela eram um activo social com verdadeiro impacto nas oportunidades de vida de cada um. Nesse sentido, a leitura de quaisquer processos de inquirição de genere da época não deixam de surpreender mesmo os mais experientes investigadores da nossa época, pelo conhecimento que o mais simples dos plebeus tinha não só sobre a sua própria ascendência, mas também sobre as famílias e parentelas dos seus amigos e vizinhos. De facto, a sociedade do Antigo Regime era o que Enrique Soria acertadamente identificou como uma sociedade genealógica:

“Añadamos a todo que nos hallamos en una sociedad, la de los siglos modernos, que ante todo se estructura de forma genealógica. Sus fundamentos son absolutamente genealógicos, entiéndase esto de la manera más amplia y completa. Por la ascendencia, uno es noble o no, goza del privilegio y la exención fiscal o no. Hombres y mujeres necesitan obtener costosas dispensas eclesiásticas si se casan de forma endogámica, es decir con parientes dentro del cuarto grado. Y esta forma de enlaces endogámicos es mucho más usual de lo que se podría creer a primera vista. Obviamente, para saber quién es tu primo tercero por cualquier línea, hay que conocer bien el árbol familiar, no digamos ya si los contrayentes están unidos entre sí por doble cuarto grado de consanguinidad por un lado, tercero con cuarto por otro, y cuarto de afinidad a su vez, por poner un caso extremo pero real. Los derechos, por otro lado, a recibir dotes al casarse las mujeres de la mesocracia y la nobleza, o al ingresar en un convento, dependen de poder establecer grados fiables de parentesco sanguíneo con los fundadores de conventos, patronatos y obras pías. Habiéndose de remontar a veces los abolorios siete, ocho o más generaciones. Los primos cuartos o quintos de estos grupos superiores se definen entre sí como deudos cercanos, por extraño que nos pueda parecer hoy en día.”[10]

É, por isso, perfeitamente compreensível e justificável o reparo que os inquisidores fizeram às declarações vagas do Padre António Vieira, nomeadamente, quando afirmaram que:

“(…) não é crível, que ainda depois dele declarante ser de maior idade, e viver na cidade da Baía com os dito seus pais, deixasse de lhes perguntar, ou de lhes ouvir dizer, como chamavam às avós dele declarante, e donde eram naturais, e moradoras, nem ainda o avô materno, nem que parentes, e amigos deixaram os ditos seus pais cá no Reino, por serem estas as coisas, que mais ordinariamente costumam os pais contar a seus filhos, e este procuram saber dos mesmos. Pelo que dele declarante não dar nesta Mesa as ditas notícias, tendo aliás outras muitas de coisas, que lhe não tocam tanto, se pode coligir, que encobre as ditas notícias de sua ascendência, a fim de se não poder averiguar com certeza, a qualidade de seu sangue, por ter algum defeito que trata de ocultar no Santo Ofício, onde não faltam algumas razões para se poder entender que com efeito, digo que tem ele declarante o dito defeito.”15

É perfeitamente claro que os inquisidores acreditavam que o Padre António Vieira estava a esconder algum defeito da sua ascendência, pelo que mandaram fazer mais algumas inquirições pontuais em Lisboa e na vila do Fundão, que foram efectivamente realizadas entre Dezembro de 1666 e Janeiro de 1667. No Fundão, por exemplo, foram ouvidos os filhos do acima referido Gonçalo Serrão de Azevedo, então já falecido, e que seria primo direito de Vieira por via materna, mas ambos afirmaram não ter conhecimento da família do famoso pregador nem de qualquer parentesco que com ele pudessem ter. O insucesso na obtenção de novos dados mais concretos e a vontade de dar por concluídas as inquirições que se arrastavam há anos, acabaram por ser decisivos para que não se fizessem novas tentativas e para que o Santo Ofício decidisse que contra o Réu se deve proceder em sua causa como contra pessoa de cuja qualidade de sangue não consta ao certo16.

E, [11]no entanto, apesar da escassez de dados genealógicos que o Padre António Vieira fornecera aos inquisidores, ele já tinha deixado as indicações necessárias sobre a sua parentela para que os seus julgadores pudessem ter chegado a uma conclusão mais sólida sobre a sua limpeza de sangue, como passaremos a explicar.

Nas declarações acima transcritas, o Padre António Vieira afirmou que conhecera o seu primo Gonçalo Serrão de Azevedo quando este o visitou no Colégio de Santo Antão, esclarecendo que este era filho de uma meia-irmã da sua mãe. Estas declarações foram feitas em 1666 e Vieira indicou então que o encontro com o primo se tinha dado há dez anos atrás[12], ou seja, em 1656. Ora, é-nos hoje possível dizer o que é que Gonçalo Serrão de Azevedo estava então a fazer em Lisboa e ainda especular, mas com algum grau de certeza, que o motivo da visita ao primo fossem precisamente as questões genealógicas do parentesco entre ambos.

Com efeito, em 1656, Gonçalo Serrão de Azevedo estaria a dar início ao seu processo de habilitação para servir o Santo Ofício da Inquisição no cargo de familiar, já que data precisamente de 12 de Junho desse ano o documento mais antigo incluso no respectivo processo de habilitação. Deste processo podemos extrair dados fiáveis sobre a ascendência do próprio e, consequentemente, também da ascendência do seu primo António Vieira[13].

Vejamos, pois, o que consta neste processo de informações de Gonçalo Serrão de Azevedo e de Juliana da Costa Pinto sua mulher moradores no lugar do Fundão, termo da vila da Covilhã18:

“Diz Gonçalo Serrão de Azevedo cavaleiro fidalgo da Casa de Sua Majestade morador no lugar do Fundão termo da Vila de Covilhã que no dito lugar não há de presente familiar algum do Santo Ofício e é povoação de mais de 600 vizinhos, e porque ele suplicante tem as partes que se requerem para o ser Pede a Vossas Senhorias se sirvam de se mandarem informar de sua limpeza , e achando ser a que convém lhe façam a mercê que pede (…). É ele suplicante filho de Manuel Serrão natural da Vila de Moura e de Branca Rodrigues de Azevedo natural desta Cidade de Lisboa e seu pai filho de Francisco Serrão, e de Joana Lopes da Rocha, da dita Vila de Moura, e sua mãe filha de Brás Fernandes de Azevedo, e de Isabel Manuel, moradores que foram na Rua da Barroca detrás das casas do Conde de Vila Franca (…).”[14]

Trata-se, sem qualquer dúvida, do processo daquele que o Padre António Vieira indicou como sendo seu primo direito. De facto, partilhava com ele, pelo menos, o avô materno, mas, possivelmente, também a avó materna. Não ignoramos o facto de Vieira ter afirmado que a sua mãe, D. Maria de Azevedo, era apenas meia-irmã da mãe de Gonçalo Serrão de Azevedo, que agora sabemos que se chamava Branca Rodrigues de Azevedo; mas também não ficamos indiferentes ao facto de ficar demonstrado que a avó de Gonçalo se chamava Isabel Manuel e que o Padre António Vieira afirmara que tinha uma tia materna chamada Vicência Manuel sem, neste caso, dizer também que era apenas meia-irmã da mãe.

As inquirições sobre a capacidade pessoal e limpeza de sangue de Gonçalo Serrão de Azevedo feitas no lugar do Fundão foram entregues ao Licenciado Diogo Pitta da Ortigueira, Prior da Igreja de São João Montencolo e comissário do Santo Ofício, e iniciaram-se a 31 de Julho de 1656. As testemunhas declararam que conheciam o habilitando (que seria pouco capaz de guardar segredos em negócios de importância) e também que conheciam seu pai Manuel Serrão, mas foram unívocas a afirmar que não conheciam a mãe, Branca Rodrigues de Azevedo. No entanto, para além destas testemunhas, outras terão sido ouvidas extrajudicialmente, como sugere a declaração demolidora do dito comissário:

“O conhecimento que tenho de Gonçalo Serrão de Azevedo conteúdo na comissão de Vossa Senhoria e nesta diligência é que ao depois que nesta terra resido sempre ouvi dizer falando-se no sobredito que tem parte de cristãonovo e de presente achei por informação das testemunhas que são velhas e que há naquele lugar de Fundão de crédito, que o dito Gonçalo Serrão é neto de um estrangeiro, e que sua mãe Branca Rodrigues de Azevedo se dizia ser cristã-nova inteira, e que naquele lugar lhe tinham dito muitas vezes na cara o sobredito e que fosse a uma sua irmã, que sendo presa na Inquisição de Évora pelo Santo Ofício foi penitenciada a mim me parece que quando não seja tanto porque a forasteiros sempre caluniam mais, o sobredito Gonçalo Serrão se não há de livrar, de que tenha parte de nação porquanto está muito infamado (…). Covilhã, 3 de Agosto de 1656. Diogo Pitta da Ortigueira.”20

Na mesma vila do Fundão foram também feitas inquirições relativas a Antónia Rodrigues, primeira mulher de Gonçalo Serrão de Azevedo, e a esse propósito surge uma declaração de Frei Pedro de Magalhães que confirma a apreciação de Diogo Pitta da Ortigueira:

“Ainda que nas inquirições deste habilitando que se tiraram em Moura não conste pouco nem muito ser Manuel Serrão pai do pretendente Gonçalo Serrão de Azevedo, dizendo haver sido natural e morador daquela vila, nem outrossim se haverem feito diligências nesta cidade da mãe do sobredito Branca Rodrigues de Azevedo, onde se diz que ela e seus pais eram naturais e moradores, me parece não se façam mais diligências sobre esta matéria porquanto, das que se tem feito sobre a capacidade do pretendente, e qualidade de sua segunda mulher que hoje é Juliana da Costa Pinto, não está capaz de servir este Santo Ofício da incapacidade do sujeito dizem as 6 testemunhas tiradas em Fundão donde mora; 5 que é de má vida e costumes (…) e 6, que não é capaz de segredo grave, a outra que é malquisto. E sobre isso informa o comissário, porque só a ele pediram da qualidade, que não se poderá livrar de xn por parte de sua mãe Branca Rodrigues de Azevedo, que se diz publicamente xn inteira, e que uma irmã da sobredita foi penitenciada em Évora (…). Lisboa, em 15 de Novembro de 1657. Frei Pedro de Magalhães.“[15]

Seguem-se considerações sobre a qualidade da mulher de Gonçalo Serrão de Azevedo, também ela de famílias cristãs-novas e, logo a seguir, surge o parecer do inquisidor Luís Álvares da Rocha, no mesmo sentido do de Pitta da Ortigueira:

“Sou do mesmo parecer, e julgo ao pretendente Gonçalo Serrão de Azevedo por incapaz de servir ao Santo Ofício. Lisboa, 15 de Novembro de 1657. Luís Álvares da Rocha”.[16]

Significa isto que o Santo Ofício concluiu que os testemunhos que afirmavam que uma tia materna do Padre António Vieira era tida na vila do Fundão por cristã-nova inteira eram dignos de crédito. Ou seja, para todos os efeitos, os inquisidores aceitaram que tanto Brás Fernandes de Azevedo, avô materno do Padre António Vieira, como sua mulher Isabel Manuel eram cristãos-novos, o que contribuiu para impedir o acesso de Gonçalo Serrão de Azevedo ao cargo de familiar. Estranho é que, seis anos apenas após estes despachos, quando surgiram dúvidas sobre a ascendência do Padre António Vieira a propósito do seu processo inquisitorial, ninguém no Santo Ofício tenha conseguido estabelecer a ligação que havia entre um habilitando malsucedido ao cargo de familiar e o réu preso nos cárceres dos Estaus, especialmente quando os dois inquisidores acima indicados, Frei Pedro de Magalhães e Luís Álvares da Rocha, fizeram parte do Conselho Geral do Santo Ofício que julgou o processo do Padre António Vieira.

Neste momento, não podemos afirmar com absoluta certeza que o Padre António Vieira tinha ascendência cristã-nova, mas podemos argumentar que é altamente provável que se os inquisidores tivessem cruzado os dados fornecidos pelo próprio com o seu arquivo de habilitações incompletas, teriam verificado o parentesco com Gonçalo Serrão de Azevedo e, consequentemente, teriam concluído que o Padre António Vieira tinha parte de cristão-novo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

AZEVEDO, João Lúcio de, História de António Vieira, 2ª ed., Lisboa: Livraria Clássica, 1931.

BAIÃO, António, O sangue infecto do P.e António Vieira – Conseqüência dos inquisidores terem razão ao dizer que, procedendo contra êle, procediam contra pessoa de cuja qualidade de sangue não constava ao certo, in O Instituto – Revista Scientifica e Literária, Vol. 77, 4ª Série, Volume 6, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1929. pp. 1-31.

MESA, Enrique Soria, El patrimonio histórico-artístico de las élites judeoconversas españolas: propuestas de análisis desde la Historia Social, in Mediterranea – richerche storiche, Anno XVI, n.º 46, Agosto de 2019. pp. 251-276.

MUBANA, Adma (Coord.), Autos do processo de Vieira na Inquisição, in

FRANCO, José Eduardo, e CALAFATE, Pedro (Dir.), Obra Completa Padre António Vieira, Tomo III, Volume IV, s/l: Círculo de Leitores, 2014.

PAIVA, José Pedro, Revisitar o processo inquisitorial do padre António Vieira, in Clero, Doutrinação e Disciplinamento, Revista Lusitania Sacra, n.º 23, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2011. pp. 151-168.

VAINFAS, Ronaldo, Antônio Vieira, Colecção Perfis Brasileiros, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Fontes primárias

Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Habilitações da Ordem de Cristo, Bernardo Vieira Ravasco, Letra B, Maço 12, n.º 149.

Habilitações da Ordem de Cristo, Gonçalo Ravasco Cavalcanti e Albuquerque, Letra G, Maço 6, n.º 159.

Habilitações do Santo Ofício, Gonçalo Serrão de Azevedo, Maço 2, n.º 45.

Inquisição de Lisboa, Processo do Padre António Vieira, n.º 1664.

[1] Doutorado em Ciências Sociais (História dos Factos Sociais), Investigador do Laboratório de Estudos Judaicos, Investigador do Instituto do Oriente (ISCSP – Universidade de Lisboa) e genealogista profissional.

[2] Encontra-se dividido em dois volumes: https://digitarq.arquivos.pt/details?id=2301562 e https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4373467.

[3] MUBANA, Adma (Coord.), Autos do processo de Vieira na Inquisição, in

FRANCO, José Eduardo, e CALAFATE, Pedro (Dir.), Obra Completa Padre António Vieira, Tomo III, Volume IV, s/l: Círculo de Leitores, 2014.

[4] Arquivo Nacional da Torre do Tombo (A.N.T.T.) Habilitações da Ordem de Cristo, Bernardo Vieira Ravasco, Letra B, Maço 12, n.º 149.

[5] A.N.T.T., Habilitações da Ordem de Cristo, Gonçalo Ravasco Cavalcanti e Albuquerque, Letra G, Maço 6, n.º 159.

[6] No sentido genérico de naturais das Índias e não necessariamente das possessões portugueses no subcontinente indiano.

[7]     MUBANA, Adma (Coord.), op. cit., pp. 120-121 (fls. 16-16v.º; negrito nosso). 11 Idem, ibidem, p. 375 (fls. 812v.º-813; negrito nosso).

[8] Na sua transcrição do processo do Padre António Vieira, João Lúcio de Azevedo omitiu a palavra meia que, efectivamente, lá está. – Cf. AZEVEDO, João Lúcio, op. cit., p. 370; A.N.T.T., Inquisição de Lisboa, Processo do Padre António Vieira, n.º 1664, fl. 814.

[9]    MUBANA, Adma (Coord.), op. cit., p. 376 (fls. 813v.º-814v.º; negrito nosso).

[10] MESA, Enrique Soria, El patrimonio histórico-artístico de las élites judeoconversas españolas: propuestas de análisis desde la Historia Social, in Mediterranea – richerche storiche, Anno XVI, n.º 46, Agosto de 2019. pp. 251-276. 15    MUBANA, Adma (Coord.), op. cit., pp. 378-379 (fl. 816v.º).

[11]    A.N.T.T., Inquisição de Lisboa, Processo do Padre António Vieira, n.º 1664, fl. 84.

[12]     MUBANA, Adma (Coord.), op. cit., p. 378 (fl. 816).

[13] Este processo está catalogado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo entre as habilitações completas do Santo Ofício, mas uma vez que Gonçalo Serrão de Azevedo nunca recebeu carta de familiar, trata-se claramente de uma habilitação incompleta e deveria estar catalogada como tal. – A.N.T.T., Habilitações do Santo Ofício, Gonçalo Serrão de Azevedo, Maço 2, n.º 45. 18 ibidem, capa.

[14] Idem, ibidem, fl. 1 (negrito nosso). 20              ibidem, fl. 31v.º.

[15] A.N.T.T., Habilitações do Santo Ofício, Gonçalo Serrão de Azevedo, Maço 2, n.º 45, fls. 82v.º-83.

[16] ibidem.

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