Padre Antônio Vieira foi um homem fora do seu tempo, um sacerdote jesuíta que apregoava uma teologia um tanto heterodoxa alicerçada no messianismo do “quinto” reino português. Os seus sermões, cartas e livros escritos numa linguagem barroca o consagraram como o “imperador” da língua portuguesa. O conceptismo e certa fugacidade em seus escritos recheados de alegorias e metáforas intermeiam com o raciocínio e clareza de suas ideias, persuadindo o intelecto. Temo não tecer uma justa apresentação ao preclaro padre Vieira, pois todo elogio ficaria muito aquém do valor intrínseco da obra e do mestre. Os dotes literários que ornam as suas obras do seu gênio são a pureza da língua e espontaneidade das palavras que jorram da profundeza de uma alma temente, vibrante, intrépida e corajosa. Foi conselheiro do rei Dom João IV e atuou como exímio diplomata na Holanda durante o domínio holandês no nordeste brasileiro. Vieira ficou conhecido pela maestria de seus eruditos sermões e, sobretudo, pela atuação em defesa dos índios, dos escravos e dos cristãos-novos (judeus) perseguidos no período inquisitorial. Entretanto, passou pelas agruras do Tribunal do Santo Ofício, quatro anos permanecendo preso, embora sempre negasse ter ancestrais cristãos-novos. Afinal, o padre Vieira tinha sangue “infecto” ou não? É disso que discorremos a seguir.

Padre Vieria nasceu em Lisboa no dia 06 de fevereiro de 1608, na Rua dos Cônegos, em Freguesia da Fé. Filho de Cristovão Vieira Ravasco e de Maria de Azevedo, que era padeira no convento de São Francisco em Lisboa. Seu pai não era nobre, mas convivia entre a nobreza. Seu avô paterno se chamava Baltazar Vieira e foi casado com uma ex-escrava. Um fato curioso, Antônio aprendera as primeiras letras do alfabeto com sua mãe que sabia ler e escrever, algo incomum para as mulheres daquela época, mas algo corriqueiro entre as matriarcas que preservavam os costumes do povo hebreu e eram responsáveis pela educação de seus filhos.

Seu pai, Cristovão, foi nomeado escrivão em Salvador, Bahia, e com 7 anos o pequeno Antônio chegou ao Brasil. Com 15 anos entrou para o Colégio dos Jesuítas, abraçando a vida religiosa, sendo ordenado padre em 1635. Desde os primórdios de sua vida celibatária seu amor e dedicação às letras faziam dele uma pessoa de destaque. Era ambíguo, pois se valia da tradição católica, mas também apresentava teses contrárias à doutrina eclesiástica. Ele atuava no plano visível e num outro velado, encoberto, valendo-se da arte para conviver com o poder da Igreja portuguesa. Vieira se destacou entre seus colegas e com apenas 18 anos se tornou professor no próprio Colégio Jesuíta. Conta-se que certa vez, os alunos do ilustre padre lhe perguntaram:

“O que poderiam fazer para ajudar os gentios, que no caso do Brasil, eram        ingleses, franceses, espanhóis, portugueses _ uma verdadeira babel.” Vieira    respondeu: “Aprende a língua deles. Você não consegue influenciar ninguém, muito menos um povo, se não dominar seu universo cultural.” (1)

O jovem recém-ordenado clérigo proferiu um Sermão a São Sebastião na Sé na Bahia, em que reverbera que o sangue de Cristo foi derramado para salvação da humanidade e, por isso, entendeu que o homem valia muito. Mas, quando percebeu que as pessoas se vendiam pelos nadas do mundo, aí afirmou que a humanidade não valia nada. (2). A sua luta a favor dos injustiçados foi preocupação central, se posicionando contrariamente à escravidão de índios e negros, principalmente, tomando as dores dos cristãos-novos que eram perseguidos e condenados pelos tribunais da Inquisição. Com isso seus superiores passaram a desconfiar que o clérigo tivesse algum antepassado judeu.

Ao regressar a Portugal, destacou-se por sua sabedoria expressada em seus eruditos sermões, tornando-se, assim, conselheiro do rei Dom João IV. Vieira propôs ao rei chamar os judeus de volta, isentá-los de impostos e acabar com a separação entre cristãos-velhos e cristãos-novos e requerer do papa o perdão geral para esses perseguidos pela Inquisição.

Entre 1646 e 1652 se destacou na missão diplomática na França e nos Países Baixos. Em 1649 fundou juntamente com os homens de negócios a Companhia Brasileira de Comércio, ajudando a reconquistar o Nordeste sob o domínio holandês. A Corte portuguesa dependia dos mercadores portugueses e cristãos-novos holandeses. Nesta época Vieira conviveu com o Rabino Menasseh ben Israel, em Amsterdam, o qual exerceu grande influência do messianismo judaico, inspirando Vieira a endossar o movimento sebastianista português.

A cabala do rabino Isaac de Luria reforçou o pensamento de Vieira que o homem é capaz de influenciar o processo divino, (3) pois Vieira apregoava um messias individual que muda a alma, o interior, enquanto o rabino de Luria pregava um messias histórico, cósmico que traria a redenção à terra. O que eles tinham em comum era a redenção da terra e da humanidade. Vieira defendia que o cristianismo era uma continuação do judaísmo primevo e, por isso, os judeus poderiam se tornar cristãos, preservando sua identidade judaica, retornando a Israel para que o messias viesse para implantar o seu reino messiânico na terra, ou seja, o reino dos justos seria nesta terra. Por esta razão o padre Vieria é considerado o pai do sionismo político.

Na minha opinião o padre Vieria teve uma grande revelação e entendimento quase perfeito, pois entendeu que a volta de Jesus para Israel só daria quando os judeus o reconhecessem também como o messias, o redentor da humanidade. Por isso, ele advogava que os judeus poderiam preservar sua identidade judaica, viver como judeus, mas crer e reconhecer Jesus como o verdadeiro messias. Tal entendimento do padre Vieira foi fantástico, pois a Igreja católica apregoava o contrário, considerava que Deus rejeitara Israel e o povo judeu, ocupando a Igreja, assim, o lugar de Israel. Hoje esta falsa doutrina é chamada de Teologia da Substituição e, infelizmente perdura até os dias de hoje em algumas denominações cristãs. O termo Teologia da Substituição adveio do Judaísmo Messiânico após 1970, quando os judeus que criam em Jesus se organizaram e entenderam pelas Sagradas Escrituras que Deus nunca rejeitou a Casa de Israel e que poderiam ser seguidores de Jesus, preservando a identidade judaica, como viveram os apóstolos e discípulos de Jesus no primeiro século de nossa era.  Entretanto, Vieira via este retorno dos judeus à terra de Israel não como uma profecia, mas como um ato político de justiça, devolver a eles a terra de seus ancestrais. Vieira afirmara que quando o fim do mundo chegasse os rituais judaicos seriam aceitos, afinal, poderiam seguir a Cristo e ao judaísmo.

Como entender as contradições e os subterfúgios que Vieira usou para   reconciliar o cristianismo com o judaísmo? Segundo seu raciocínio, como o   Messias esperado pelos judeus ainda não havia chegado e a profecia não havia   sido cumprida, a violência, a guerra e a corrupção eram piores em seu tempo que             no passado, e a promessa profética de paz sobre a terra não havia se realizado.”            (Novinsky, 2021).

Vieira estava biblicamente correto ao apregoar os judeus voltando para a sua terra e aguardando a chegada do messias. Vieira também reiterava que os judeus poderiam se misturar com os gentios e que seus descendentes teriam como destino a terra santa. Afirmava que Deus os misturou para estabelecer um império universal, pois via Portugal com uma missão de ser a continuidade de Israel, ou seja, o “Quinto Império”(4), judeus e cristãos unidos. Analisando alguns sermões do padre Vieira percebe-se que ele idealizava que um dia judeus e gentios seriam um só corpo, formando uma só família, vivendo em paz.

Os judeus têm o direito de aguardar o momento quem que voltarão para a sua terra de origem. E então, chegará o tempo messiânico e haverá paz na terra.” (5)

Veira viveu além de seu tempo, quando afirmou que o homem pode ser salvo fora da Igreja católica, pois via a mensagem de Cristo como universal e salvífica.

Embora o padre Vieira não citasse a Bíblia em muito de suas afirmativas e teses, eu posso supor que ele conhecia bem as Sagradas Escrituras como um teólogo de destaque. Há várias passagens na Bíblia que apregoam que os judeus seriam espalhados pelo mundo, mas que seriam trazidos pelo próprio Deus à terra de seus ancestrais nos finais dos tempos. Vejamos abaixo, algumas citações do Antigo Testamento:

Espalhar-vos-ei por entre as nações e desembainharei a espada atrás de vós; a vossa terra será assolada e as vossas cidades serão desertas…mas se confessarem a sua iniquidade e a iniquidade de seus pais…então, me lembrarei da aliança com   Jacó (Israel) e também da minha aliança com Isaque e da minha aliança com    Abraão e da terra me lembrarei…mesmo assim, estando eles na terra dos seus     inimigos, não os rejeitarei, nem me aborrecerei deles, nem me aborrecerei deles,            para consumi-los e invalidar a minha aliança com eles, porque eu sou o Senhor,    seu Deus.” (Levítico 26:33,40,42,44) (6)

            “Te ajuntarei todo, ó Jacó, congregarei o restante de Israel… subirá diante deles            aquele que abre o caminho; eles romperão e subirão pela porta…o rei irá diante       deles e o Senhor à testa deles.” (Profeta Miquéias se referindo a volta dos judeus    à sua terra referindo-se à volta do Messias 2:12-15); (7)

            “E os espalhei entre as nações…Mas vos tirareis dentre as nações e vos   congregarei de todos os países e vos trarei para a vossa terra…lhe darei um            coração novo, um Espírito Novo…e fareis que andeis nos meus estatutos e   guardeis minhas ordenanças (Torá)…e fareis deles uma nação da terra de Israel             e um Rei será rei de todos eles…assim, eles serão o meu povo e Eu serei o seu     D´us.” (Profeta Ezequiel 36:19;24;26;27;37:22;23) (8)

Podemos afirmar que padre Vieira conhecia igualmente os textos paulinos ao reconhecer a missão de Israel e do povo judeu e que em Cristo os gentios cristãos estão unidos à Casa de Israel, pois suas afirmativas estão em consonância com a citação do apóstolo Paulo:

Pergunto, pois: terá Deus rejeitado o seu povo? De modo nenhum…Deus não    rejeitou o seu povo, a quem de antemão conheceu.” (Carta do Apóstolo Paulo,    Romanos 11:1-2)

Naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel e          estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança e sem Deus no mundo. Mas, agora em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados      pelo sangue de Cristo. Porque ele é a nossa paz, do qual de ambos (judeus e             gentios) fez um; e tendo derrubado a parede da separação que estava no meio, a            inimizade (entre judeus e gentios) …Assim não são mais estrangeiros (gentios) e      peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus (judeus e   gentios em Cristo).” (Carta do Apóstolo Paulo, Efésios 2:11-14;19) (9)

Analisando o Sermão da Sexagésima do padre Vieira, deparei-me como suas palavras são vivas e eficazes para os cristãos de hoje. Nota-se que o ilustre sacerdote era um grande conhecedor das Sagradas Escrituras. Neste sermão ele tece profundas explicações e alegorias sobre a parábola do Semeador ensinada por Cristo. Valendo-se de uma perfeita hermenêutica, Vieira citou em várias passagens neste sermão, como Moisés, os profetas Ezequiel, Jonas, Amós, Isaías, além de vários versículos do apóstolo Paulo. Como exemplo, cito alguns tópicos do Sermão da Sexagésima:

Todas as criaturas, quantas há no mundo, se reduzem a quatro gêneros: criaturas         racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas            vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis como as pedras, e não há mais.          Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A         natureza insensível o perseguiu nas pedras; a vegetativa, nos espinhos; a             sensitiva, nas aves; a racional, nos homens. E notai a desgraça do trigo, que onde          só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras secaram-no, os             espinhos afogaram-no, as aves comeram-no e os homens? Pisaram-no:       “conculcatum est ab hominibus”, diz a glosa, foi pisada pelos homens. Quando         Cristo mandou pregar os apóstolos pelo mundo, disse-lhes desta maneira: Euntes             in mundum Universum, praedicate omni creaturae: Ide, e pregai a toda criatura (Mc16:15). Como assim, Senhor? Os animais não são criaturas? As árvores não       são criaturas? As pedras não são criaturas? Pois hão os apóstolos de pregar às   pedras? Sim, diz S. Agostinho; porque, como os apóstolos iam pregar a todas as          nações do mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar homens-h  omens, homens brutos, homens-troncos, haviam de achar homens-pedras. E         quando os pregadores evangélicos vão pregar a toda criatura, que se armen     contra eles todas as criaturas? Grande desgraça.” (10).

Muitos pregadores de hoje deviam seguir as recomendações do padre Vieira quando forem preparar os seus sermões. Vejamos o que ele disse:

Uma árvore tem raízes, tem troncos, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores          e tem frutos. Assim há de ser o sermão: há de ter raízes fortes e sólidas, porque            há de ser fundado no Evangelho: há de ter tronco, porque há de ter um só assunto          e tratar uma só matéria. Deste tronco hão de nascer diversos ramos, que são         diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela. Estes             ramos não hão de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão   de ser vestidos e ornados de palavras. Há de ter esta árvore varas, que são a          repreensão dos vícios; há de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo,        há de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há de ordenar o sermão.” (11).

Já na época do padre Vieira existiam pregadores, cujas igrejas eram espiritualmente frias, sem frutos. A recomendação do padre Vieira foi:

            “Semen est Verbum Dei, Semeai a Palavra de Deus. Sabeis cristãos, a causa,      por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras   dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falam do que          ordinariamente se ouve. A Palavra de Deus, como dizia, é tão poderosa e tão             eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até as pedras e nos espinhos           nasce…Ventum seminabunt, et turbinem colligent. Quem semeia ventos, colhe       tempestades. Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade, se não    se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de correr tormenta em    vez de colher frutos…Pois o gostarem ou não gostarem os ouvintes, preguem. Oh!             Que advertência tão digna… Para falar ao vento, bastam palavras: para falar ao           coração, são necessárias obras.”(12).

Em 1666 o Tribunal do Santo Ofício prendeu o padre Vieira devido sua obra “História do Futuro” em que defendia o Sebastianismo e as trovas de Gonçalo Anes Bandarra “Odor de Judaísmo.” Depois de 2 anos recebeu a pena de reclusão no convento sem direito a voto e hierarquia. Padre Vieira foi acusado também de ter ascendentes judeus, ele negou e omitiu sobre seus avós maternos. Em 1669 foi à Roma recorrer ao Papa Inocêncio XI. O Papa solicitou provas sobre os absurdos cometidos pelos Tribunais contra os judeus e que lhe fossem enviados 4 a 5 processos para que ele analisasse. Não deu em nada, pois o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição nunca enviou sequer um processo. Vieira teve a coragem de dizer que o Tribunal não era político ou mesmo religioso, mas era racista, disse ao Papa. Sobre o fanatismo religioso do Tribunal da Inquisição Vieira disse acerca da pureza de sangue requisitada tanto pelo governo como pelo clero que os principais santos como Pedro, Paulo, João, Maria, etc. todos eram sanguineamente judeus. Vieira afirmava que os Tribunais eram movidos pelo ódio, não havendo sentença justa. O padre Manoel Lopes de Carvalho, baiano, foi queimado pelo Tribunal do Santo Ofício em 1726 lembrava uma frase do padre Vieira: “Se não fosse a Inquisição não haveria tantos judeus.”(13). Os Tribunais caçavam judeus pelas delações dos réus, que sob cruel tortura, informavam nomes dos próprios familiares. Além do ódio contra os judeus que eram acusados da morte de Cristo, havia a ganância econômica, pois os bens dos réus eram confiscados e repartidos entre a Igreja e a Corte. Os Tribunais precisavam ser autossustentáveis.

Afinal, o padre Vieira tinha ou não ancestrais judeus?

Alguns historiadores suspeitam que sim, mas havia carências de provas. O amor, envolvimento e defesa do padre Vieira em relação aos judeus merecem uma análise mais profunda. Em seu processo inquisitorial consta sempre sua resposta negativa e clara omissão dos seus avós maternos, mas por quê? Vieira valia-se do seu pai que era escrivão oficial da Corte e sua habilitação “de genere” através da qual lhe permitiu acesso à ordem dos Jesuítas. Afinal, era um sacerdote católico e o Inquisidor estava mais preocupado que padre Vieira esclarecesse sobre suas declarações teológicas que conflitavam com as doutrinas católicas. Talvez seja por isso que o Tribunal não deu tanta importância aos ascendentes do lado materno e quando questionado, Vieira valia-se de subterfúgio, omitindo informações.

Seus avós maternos eram Brás Fernandes de Azevedo e Isabel Manoel, pais de sua mãe Maria de Azevedo, eram cristãos-novos. Vieira aprendeu a ler com sua mãe e com certeza sabia sobre sua conexão familiar com os cristãos-novos, judeus que foram obrigados à conversão forçada ao catolicismo. Este fato só veio à tona quando o historiador português Dr. Guilherme Maia de Loureiro (14), analisando outros processos disponíveis na Torre do Tombo em Lisboa, encontrou o réu Gonçalo Serrão de Azevedo. Este tentou conseguir uma habilitação para servir junto ao Tribunal da Inquisição quando foi negado, pois sua mãe Branca Rodrigues de Azevedo foi penitenciada pelo Tribunal de Évora como sendo cristã-nova. Branca Rodrigues de Azevedo era irmã da mãe do padre Vieira, Maria de Azevedo. Tal fato torna evidente a afirmação que padre Antônio Vieira tinha conhecimento e informação sobre a sua conexão familiar com as raízes judaicas do lado materno.

Nas declarações acima transcritas, o Padre António Vieira afirmou que conhecera o seu primo Gonçalo Serrão de Azevedo quando este o visitou no Colégio de Santo Antão, esclarecendo que este era filho de uma meia-irmã da sua mãe. Estas declarações foram feitas em 1666 e Vieira indicou então que o encontro com o primo se tinha dado há dez anos, ou seja, em 1656. Ora, é-nos hoje possível dizer o que é que Gonçalo Serrão de Azevedo estava então a fazer em Lisboa e ainda especular, mas com algum grau de certeza, que o motivo da visita ao primo fossem precisamente as questões genealógicas do parentesco entre ambos.

Com efeito, em 1656, Gonçalo Serrão de Azevedo estaria a dar início ao seu processo de habilitação para servir o Santo Ofício da Inquisição no cargo de familiar, já que data precisamente de 12 de junho desse ano o documento mais antigo incluso no respectivo processo de habilitação. Deste processo podemos extrair dados fiáveis sobre a ascendência do próprio e, consequentemente, também da ascendência do seu primo António Vieira”. (Loureiro, 2023). (15)

 

Conclusão

Padre Antônio Vieira omitiu informações sobre sua ascendência judaica junto ao Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. Sua atitude foi correta? E se ele tivesse confessado sobre as suas raízes judaicas, o que teria acontecido com ele? Seria ele queimado nas fogueiras da Inquisição como ocorreu com seu colega baiano padre Manoel Lopes de Carvalho? Não sabemos! Pode-se extrair das Sagradas Escrituras que a autoridade é absoluta, mas a obediência é relativa. Ou seja, devemos obedecer, se somente se, a autoridade age segundo os mandamentos de Deus. Portanto, eis aí uma resposta.

Combateu a intolerância religiosa, a parcialidade, a crueldade e injustiça dos Tribunais do Santo Ofício da Inquisição do qual foi também vítima.

Padre Vieira mostrou seu exímio conhecimento escatológico quando afirmou que podia-se viver seguindo a Cristo e viver o judaísmo, propondo uma reconciliação da Igreja com os judeus. Ele sonhava que a Terra Santa deveria ser a terra dos judeus e mesmo que houvesse conflitos e tensões, tudo seria resolvido quando os judeus retornassem à terra de seus ancestrais para que se cumprisse a redenção messiânica universal.

Sua luta se deu em dois planos: político e teológico, propondo soluções concretas para que Portugal saísse da crise econômica por meio de justificativas baseadas nas Sagradas Escrituras, segundo sua própria interpretação. Entretanto, sua afirmativa que a solução para o obscurantismo e fanatismo seria sanada com o advento do “Quinto Império” que se consolidaria após o regresso das Dez Tribos Perdidas à terra prometida e a filiação do povo judeu ao povo português foi uma infeliz extrapolação das Sagradas Escrituras.

Um fato notório do legado de Vieira foi a sua insigne erudição que o consagrou “imperador” da língua portuguesa como escreveu o padre Antônio Chabel, prefaciando a famosa coleção “Sermões”:

Cientes que Vieira é  patrimônio comum de Portugal e Brasil, que é um dos       nomes luso-brasileiros de projeção obrigatória na literatura universal,            considerado o maior escritor da língua portuguesa em prosa, como   também grande entre os oradores de todas as nações, dele recolhemos a             mensagem do culto pelos estudos humanísticos que plasmam e enobrecem as      grandes inteligências; dele aprendemos o amor que educa e eleva as classes         humildes, e, à sua escola, seremos as sentinelas vigilantes da Pátria e da   Religião”. (Chabel, Pe. Antônio,1957) (16)

Quão grande legado deixou Vieira não só em Portugal como no Brasil. Que lindo trabalho ele realizou no Maranhão quando regressou de Portugal em prol dos injustiçados pela escravidão, expressando o seu amor aos pobres e humildes. Deixou grande exemplo de vida através de suas mensagens e de suas obras, testemunhando sua fé em Cristo.  Se Cristo é amor, como os inquisidores podiam matar alguém colocando em suas mãos uma cruz, símbolo do perdão e da remissão?

O próprio Vieira asseverou:

“Para falar ao vento, bastam palavras: para falar ao coração, são necessárias   obras” (17).

Sua luta contra a intolerância e o fanatismo religioso não foi em vão. Marquês de Pombal, ministro do rei D. José, propôs o fechamento do Tribunal cerca de 60 anos após a morte do longevo padre Vieira. Finalmente, em 1821 a Constituinte da Corte portuguesa extinguiu a Inquisição em Portugal e nas colônias do reino lusitano.

“Matar um homem não é defender uma doutrina, é matar um homem.”

(Sebastien Castéllion – 1515-1563)

(*) Marcelo Miranda Guimarães

Fundador da Abradjin e do Museu da História da Inquisição

Membro da Diretoria do IHGMG – Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais

Bibliografia e Notas:

  1. Novinsy, Anita. A luta inglória do Padre Antônio Vieira – LVM Editora,   São Paulo-SP: 2021, p.10
  2. Ibidem, p. 11
  3. Ibidem, p. 22
  4. “Quinto Império” português foi uma crença oriunda do Padre Antônio      Vieira em conformidade e semelhança com a ideia de Quinta        Monarquia, do historiador exilado D. João de Castro, ambas noções fundamentadas nas trovas do sapateiro e profeta messiânico, Gonçalo       Annes Bandarra que   viveu na cidade de Trancoso (1500-56).
  5. Ibidem, p.41
  6. Almeida, João Ferreira de. A Biblia Sagrada – Sociedade Bíblica do         Brasil, São Paulo-SP: 1993, p.124
  7. Ibidem, p.802
  8. Ibidem, ps.752-753
  9. Ibidem, ps.193
  10. Vieira, Padre Antônio. Sermões – Editora das Américas, Vol.1. São Paulo-SP|: 1957, ps.39-40
  11. Ibidem, p.66
  12. Ibidem, p.76
  13. Novinsy, Anita. A luta inglória do Padre Antônio Vieira – LVM Editora, São Paulo-SP: 2021, p.62
  14. Guilherme Maia de Loureiro, Doutorado em Ciências Sociais (História dos Factos Sociais), Investigador do Laboratório de Estudos        Judaicos, Investigador do Instituto do Oriente (ISCSP – Universidade de Lisboa) e genealogista profissional.
  15. Revista da ASBRAP, número 30
    Este processo está catalogado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo    entre as habilitações completas do Santo Ofício, mas uma vez que     Gonçalo Serrão de Azevedo nunca recebeu carta de familiar, trata-se   claramente de uma habilitação incompleta e deveria estar catalogada        como tal. – A.N.T.T., Habilitações do Santo Ofício, Gonçalo Serrão de         Azevedo, Maço 2, n.º 45.
  16. Vieira, Padre Antônio. Sermões – Editora das Américas, Vol.1. Prefácio do Padre Antônio Chabel . São Paulo-SP: 1957
  17. Vieira, Padre Antônio. Sermões – Editora das Américas, Vol.1. São Paulo-SP: 1957 – p.55

(Observação: as frases grifadas no texto em itálico se referem aos autores citados)

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