Existem pouca documentação primária sobre a vida social da escassa população judaica no vasto território brasileiro nos primeiros séculos de colonização, e menos ainda sobre o paradeiro de médicos, barbeiros e boticários.
A medicina em Portugal do Séc. XVI e seguintes era pouco evoluída em comparação à européia da época e é de lá que vieram, nem sempre voluntariamente, os primeiros “práticos da medicina”.

Com a armada descobridora de Pedro Álvares Cabral, veio Mestre João, bacharel em medicina, físico e astrônomo. Mestre João era cirurgião de D. Manuel, rei de Portugal. Em 27 de abril de 1500, pisou a terra brasileira, mediu a posição dos astros, refez cálculos astronômicos e, depois de curta permanência, partiu para as Índias Orientais. Ele simbolizou bem o critério da medicina da época; além de físico, era cosmógrafo e astrólogo.

Dificilmente, naquele tempo, um médico ocupava-se somente da medicina; geralmente exercia mais ofícios. Todos os seus conhecimentos em medicina não bastaram para curar uma infecção da perna da qual queixou na carta a D. Manuel. Mestre João escreveu em espanhol ao rei de Portugal. Quem era mestre João? Não faria parte do grupo de refugiados judeus que fugiram da inquisição espanhola para Portugal? Não pertencia a uma da 600 famílias mais abastadas, para as quais conseguiu-se a licença de estada no território português em troca de pagamento de 600 mil cruzados em ouro?

O rei D. Manuel e seu tio antecessor, D. João II, souberam aproveitar a capacidade e os conhecimentos dos fugitivos judeus da Espanha:
a) D.Manuel, prezando a companhia de homens eruditos, nomeou o célebre Abraão Zacuto, seu astrólogo e cronista.
b) José Vecinho, físico de D. João II, traduziu para o espanhol a descrição do astrolábio de Zacuto – Almanach Perpetuum Celestium Motuum.

Assim, judeus e cristãos-novos participaram não somente do descobrimento do Brasil, mas ainda, anteriormente, da elaboração de mapaas, astrolábios e cálculos náuticos. Graças aqueles trabalhos, Portugal ocupou a vanguarda da navegação no séc. XV, da qual resultou o descobrimento do Brasil.

Na frota de Pedro Álvares Cabral veio para a terra Santa Cruz o “língua” Gaspar da Gama, judeu, depois batizado. “Registram vários historiadores, por isso, que Gaspar da Gama teria sido o primeiro judeu a pisar a terra brasileira”.
Após o descobrimento, vieram para a terra Santa Cruz expedições de várias nações, mas a maioria foi ibérica. Com as expedições vieram indivíduos voluntários, outros engajados, recrutados, homiziados e condenados. Numa das expedições veio o cristão-novo Fernando de Noronha, que arrendou de Portugal a terra de Santa Cruz, comprometendo-se a construir feitorias pela concessão da exploração do pau-brasil.

Não sendo encontrado ouro no Brasil, o interesse de Portugal concentrou-se na Índias Orientais e D. Manuel I, em decreto de 16 de Janeiro de1504, nomeou Noronha, cavaleiro da Coroa e donatário por toda a vida, sendo seu filho mais velho o herdeiro da capitania. O cristão-novo Fernando de Noronha foi, dessa maneira. O primeiro donatário do Brasil.

Não há provas de que havia cirurgiões, barbeiros ou boticários a bordo de navios de Noronha e ,se porventura os houvesse, não há vestígios de que tivessem permanecido na Colônia.

Nos primeiros anos, nas primeiras décadas, nem se pode praticamente falar da existência de medicina no território brasileiro. Os primeiros profissionais da medicina a se radicarem no Brasil foram poucos cirurgiões, barbeiros, boticários e aprendizes de barbeiros que vieram nas expedições colonizadoras de Martim Afonso de Souza (1530) e dos donatários das capitanias criadas por D.João III, a partir de 1532, depois que a França e outras nações haviam mostrado interesse pelas terras brasileiras. Os recém-checados profissionais da medicina localizaram-se nas feitorias e ajudaram a fundar os primeiros povoados.

O êxodo de judeus e cristãos-novos de Portugal intensificou-se quando surgiram rumores que D. João III empreendia tentativas de conseguir a bula papal para a instituição da Inquisição em Portugal. Os Judeus espanhóis emigrados para Portugal, bem sabiam o que significavam as teias da Inquisição e fugiram para onde lhes surgisse oportunidade. De medo da Inquisição, na esperança de liberdade, embarcavam em navios precários, rumo a terras longínquas e desconhecidas. Enfrentavam tempestades no mar, assaltos de piratas; arriscavam tudo, só para escapar de perseguidores fanáticos, das leis discriminatórias, dos pesados tributos e da opressão.

Vieram cristãos-novos às mancheias e deles se povoaram as capitanias, desde a de Pernambuco, ao norte, a Nova Luzitânia de Duarte Coelho Pereira, até a de São Vicente, ao sul, de Martim Afonso de Souza. Muitos meios cristãos, alguns judeus, quase todos cristãos-novos. Entre eles estavam os primeiros profissionais da medicina no Brasil.

Era cristão-novo Jorge de Valadares, primeiro profissional diplomado a exercer a medicina no Brasil, com ordenado de 2000 réis mensais e mais 40 réis para o mantimento. Veio integrada a comitiva do governador geral Tomé de Souza, designado para físico-mor de Salvador . Empossou=se no cargo em 1-º de maio de 1549, nele permanecendo até 1553. Sabe-se que faleceu na Colônia em 1557.

Tomé de Souza veio acompanhado de 1000 pessoas, das quais 400 eram degredados, provenientes das cadeias do reino, muitos deles condenados por delitos que hoje não seriam considerados como tais. Povoava-se assim o domínio ultramarino com portugueses, espanhóis e , em proporção menor, franceses, holandeses, ingleses e germânicos. Também vieram judeus de todos os reinos europeus, os quais se cruzaram entre si e efetuaram um imenso caldeamento com os indígenas e os negros africanos.

Alguns cedo regressaram, enquanto outros ficaram, constituindo família. Tomé de Souza também trouxe consigo o boticário cristão-novo Diogo de Castro, designado por D.João III para cuidar da botica, mediante quinze mil-réis anuais.

Chegou ao país, na comitiva do segundo governador D. Duarte da Costa, o cristão-novo Jorge Fernandes, licenciado em medicina e sucessor de Jorge Valadares no cargo de físico-mor da cidade de Salvador, sede do governo geral do Brasil. O licenciado Jorge Fernandes foi nomeado em 20 de abril de 1553, com ordenado anual de 60.000 réis, que não deixara guardar proporções com o de duzentos mil réis a que montava a côngrua do Bispo.

Fora igualmente nomeado um mestre Pedro, cirurgião, para a capital do novo Estado. “Jorge Fernandes não era amigo do Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha e dizia que as qualidades do Bispo bastavam para despovoar um reino, quanto mais uma cidade tão pobre como esta. Mais tarde andou às voltas com a Inquisição, escapando sem grande dano.

Durante as primeiras visitações do Santo Oficio, falava-se ainda Jorge Fernandes:
Fernão Ribeiro de Souza, denunciado perante a mesa do Santo Oficio em 6 de Agosto de 1591,disse que haverá 25 anos que nesta cidade morreu Jorge Fernandes, físico, cristão-novo, o qual na doença disse a hua sua ma que curuva, que quando ele moresse o lavasse e amortalhasse ao modo judaico, o que a dita sua ama fizera assi.

O padre Luís da grã, da Companhia de Jesus, também denunciou wm 14 do mesmo mês e ano:
Que havera trinta e cinco anos, mais ou menos, que nesta cidade foi preso Jorge Fernandes, físico, meio cristão-novo, por dizer que cristão Senhor Nosso nascera com corpo glorioso imortal e impassível, e estando preso, o perguntou, a ele denunciante, por dúvida se era aquilo verdade ou não; depois o viu solto, não sabe como e he já defunto.

O padre Nóbrega menciona o mesmo licenciado Jorge Fernandes na carta escrita a Miguel Torres, na Bahia (Rio Vermelho, agosto de 1557): “porque a mim devem já ter por morto, porque ao presente fico deitando sangue pela boca. O médico de quá, o licenciado Jorge Fernandes hora diz hévea quebrada, hora que he de peito, hora que pode ser da cabeça; seja de onde for, eu que o mais sinto he ver a febre ir me gastando pouco a pouco”. Jorge Fernandes exerceu suas funções oficiais até 1557 e adquiriu certo prestígio em Salvador.

Era cristão-novo,suspeito de judaísmo, encarcerado pela Inquisição por falsa conversão, o sucessor de Jorge Fernandes, o mestre Afonso Mendes, cirurgião-mor de Lisboa, filho de Álvaro Mendes, morador em Portel, que tornou-se físico em Salvador. Nomeado por alvará régio de 5 de fevereiro de 1557, foi também intitulado: “Cirurgião-mor das partes dos Brasil”. Veio para servir no período administrativo do terceiro governador –geral, o benquisto Mem de Sá, com ordenado de dezoito mil-réis anuais, aumentando depois de mais de seis mil réis pelo próprio Mem Sá, pela direção da Botica Real. Mestre Afonso trouxe toda sua família, composta da mulher, Maria Lopes, e vários filhos. Radicaram-s na Bahia e não mais regressaram a Portugal.

Mem de Sá governou o Brasil por quinze anos, de 15557 a 15572, quando faleceu.Durante todo esse tempo, Mestre Afonso exerceu o cargo de primeiro cirurgião da Colônia. Ainda em 1570, no rol das autoridades que assinaram o Instrumento de Serviços, ou atestado de feitos de Mem de Sá no governo do Brasil, encontra-se o nome do bacharel Mestre Afonso, cirurgião do Rei. Através das “Denunciações” sabe-se que Mestre Afonso, sua mulher e filhos açoitavam um crucifixo às sextas feiras. Mestre Afonso faleceu pobre em Salvador, sem deixar cabedais. Sua viúva, Maria Lopes, tornou-se lavradeira e vivia de venda de franjas e costura.(A irmã de Maria Lopes, Leonor da Rosa, foi casada com o cristão-novo João Vaz Serrão, cirurgião.)

Apesar de serem poucos, portanto, “enfreguesados” (tiveram muitos pacientes), não enriqueceram os médicos no primeiro século da Colônia.

Anos mais tarde, em 1591, veio o mestre José Serrão, cristão-novo como cirurgião mor para servir na administração do governo de D.Francisco de Souza, com vencimentos anuais de dezesseis mil réis. Em 1599 ainda ocupava suas funções, havendo neste ano acompanhado D.Francisco na longa viagem de inspeção que se prolongou até São Paulo de Piratininga.

“E cristãos-novos, finalmente, foram tosos, ou quase todos os cirurgiões e boticários que exerceram a profissão no Brasil, não só no séc XVI, como até no séc. XVII e meados do séc.XVIII”.

Nas entrelinhas das “Denunciações”, uma das poucas fontes existentes da época, pode se delinear o quadro do ambiente na colônia para qual vinham os médicos, barbeiros e boticários cristãos-novos degredados entre os homiziados e fugitivos. Em geral, “o reinol que vinha para o Brasil chegava a Olinda faminto e nu”, como os descrevia Duarte Coelho –“Davam duro no comercio, juntaram seus cruzados e não raro acabaram senhores de engenho’.
Entre os degredados vinham médicos, barbeiros e boticários culpados de máxima culpa “ de heresia judaica por falsa conversão, pois uma vez batizados não criam em tudo que mandava crer a Santa Igreja de Roma; judaizaram e rezaram sem dizer: “Gloriam Patri et Jesus Cristo” no fim da reza.

É possível imaginar em que estado físico e moral vinham os degredados depois de longa e perigosa viagem. Pode-se compreender a dor do desapontamento, a raiva e o ódio que deviam ter sentindo pela injustiça que sofreram na terra onde nasceram, onde seus ancestrais viveram durante séculos e onde de repente tornaram-se estranhos e indesejáveis.

Separados das famílias, depois de penoso confisco de todos os seus bens, dos vexames por que passaram, da traição e abandono de amigos, chegou a estranha vastidão da Colônia, sem nada, com a roupa esfarrapada no corpo e o sambenito por bandeira.

Na “conquista” ficavam entregues a própria sorte, sem nenhuma defesa, em meio hostil, estranho, diferente de tudo que deixaram para trás. Não era fácil vencer aquele doloroso replante, embora o clima parecesse ameno e a terra sem fim prometesse a liberdade. Podiam exercer sua profissão com os parcos meios que tinham, com a intuição, com as plantas abundantes que encontraram e, acima de tudo, com a compreensão humana da dor alheia. Mas com o Governador Francisco de Souza veio, também, o visitador do Santo Oficio – a sombra implacável dos cristãos-novos que os seguia por toda parte.

Não é de admirar que os recém chegados desenvolvessem uma mentalidade sui generis: queriam pensar só no presente, dizendo com André Fernandes: “ neste mundo queria eu levar boa vida, que no outro mas que me levam os diabos, lá não me vê ninguém” – e Gaspar Rodrigues Covas, cristão-novo de Itamaracá, castelhano da Ilha da Palma, não pensava de modo diferente ao dizer: “ compadre comamos nós e bebamos boa vida que neste mundo não temos mais que nascer e morrer e não sabemos quando hemos de morrer”. E, bastava que quisesse cobrar umas curas que lhe deviam, para que “ caísse na suspeita da Fé”.

Havia pouquíssimos médicos na colônia; em Olinda existiam somente cinco ou seis barbeiros licenciados e nenhum médico, enquanto que em Itamaracá, lugarejo pequeno, havia dois cirurgiões: Julião de Freitas e Gaspar Rodrigues Covas. Não é possível que viessem exclusivamente da profissão, a qual certamente, rendia muito pouco. “O mameluco Julião Freitas morador da Vila de Itamaracá e dela natural, filho de um tabelião português e de uma índia forra, ganhou direito de exercer a ,medicina em Olinda, por não haver um só físico lá”.

E embora viessem “pobres e nus” tiveram animo de trabalhar em tudo que lhes surgisse pela frente, chegando a ser “apatacados” como o cirurgião Fernando Soeiro. Por sua vez, apenas um pouco melhor situados, encontravam sempre alguém invejoso que os denunciasse ao comissário do Santo Oficio.

Assim, ao medo dos índios, do contágio de doenças, epidemia, picadas de cobras e insetos, ajuntou-se mais um medo: o da Inquisição. O medo e os comissários do Santo Oficio eram presenças constantes na Colônia.

As primeiras doenças apontadas na colônia foram as febres, a malaria, a bouba (doença infecciosa causada pelo treponema pertenue, que determina alterações semelhantes as das Sífilis; framboesia), a opilação (provocada pela deficiência de nutrição – opilação do fígado e do baço. Falta de ferro no organismo), puru-puru (dermatose contagiosa que se caracteriza por manchas brancas. Indígenas da tribo dos paumaris, assim chamados por ser o puru-puru endêmico entre eles), o maculo (doença de negros, características por diarréia com relaxamento do esfíncter, que se dilata de tal forma que a mão inteiro pode ser sondar o intestino. Era tratado com fumo), o tétano, as paralisias, as disenterias, a hemeralopia (cegueira noturna: inaptidão para perceber a luz escassa à noite ou à hora crepuscular) e os envenenamentos.

O Brasil foi muitas vezes fustigado por grandes pestes, epidemias ou doenças gerais: bexigas, priorizem, tabardilho, câmaras de sangue, tosse e catarro. Havia sarampo, malaria ou impaludismo – as terríveis maleitas, a mais mortífera das epidemias nacionais. Estas manifestações maláricas eram, as mais graves da patologia indígena. Outra epidemia que causava muitas vítimas foi a “câmara de sangue”, ou disenteria hemorrágica. De todas as epidemias, a que causou meiore estragos e cuja existência é assinalada várias vezes foi a varíola, que grassou de forma violenta em 1563. Morreram 30.000, no espaço de dois ou três meses.

Com os escravos chegaram novas doenças: a moéstia do sono, o bócio parasitário e outras não definidas. Depois vieram as pestes, a cólera, a febre amarela, o tifo, vermes de várias espécies, as moléstias dos aparelhos digestivos, respiratórios e genitais e picadas de insetos de várias espécies antes desconhecidos.

Com os negros, os “horrores de porão” incrementaram a importação de males, recrudescidos pelas misérias do cativeiro.

A escassez de médicos na Colônia prolongou-se por muito tempo. Não foram grandes profissionais os médicos que aqui viveram, e isso talvez fosse uma das razões de descrédito na arte médica e motiva pelo qual tinham preferência os feitiços e as rezas.

Embora não se possa dissociar a medicina da Colônia da medicina portuguesa, nos primórdios do descobrimento do Brasil, as diferenças são marcantes, já no principio, pelas diferenças ambiental e social.

Nos primeiros tempos, qualquer um podia intitular-se profissional da medicina e praticar a cura sem dar conta a ninguém. Não havia meios de se pôr em prática o regulamento sanitário reinol. Somente no fim do séculoXVI, em 1597, o cirurgião-barbeiro Antônio Rodrigues foi investido nas funções de “Juiz do Oficio dos Físicos”, com a obrigação de examinar e licenciar os candidatos ao exercício da profissão.

Em Portugal, o estudo da medicina era deplorável. Hermann Boernhaave (Famoso medico holandês e professor de medicina) só foi conhecido em Coimbra somente 3 anos após sua morte. O ensino limitava-se à leitura de Galeno, Hipócrates, Razis e Avicena. “Ao lado desta leitura de quatro cadeiras grandes de prima (de duração de 6 anos), véspera, tércia e nôa, tinha duas outras de menor valia ( de duração de 5 anos), de onde o nome de catedrilhas, nas quais os Mestres se ocupavam, também, com obras de Galeno”.

Na falta de professores ensinavam os “conductários” (substitutos). A prática hospitalar limitava-se a dois anos. A freqüência era auferida mediante o testemunho do juramento de 2 condiscípulos. Ao estudo da anatomia bastavam 9 dissecções em carneiros, feitas no hospital, pois não havia sala nem gabinete anatômico.

Salamanca servia de modelo para a faculdade portuguesa: Se cpnservaran todos los costumbres antiguos sim conceder nada adalamento de la época, ni tenen em coenta la major ilustration que ya habia, y los descobrimientos em todos los ramos Del humano saber”. Era tal quadro da medicina da península: “daquele caos informe saíram os germes da civilização colonial”.

Licenciados em medicina ou físicos, a exemplo dos primeiros físicos de Salvador, como cristãos-novos Jorge de Valadares e Jorge Fernandes, desempenharam a profissão sem restrição, a mercê da licença-dipoloma que obtiveram após um curso regular em escola portuguesa ou castelhiana . Cirurgiões-barbeiros curavam como físicos e cirurgiões por falta destes. A diferença entre o cirurgião-barbeiro e o barbeiro consistia em que o primeiro possuía habilitação e licença para a prática, enquanto o segundo exercia suas funções após indicação formal de um físico ou cirurgião. O cirurgião-barbeiro podia praticar toda a cirurgia, ao passo que o barbeiro podia apenas sangrar, sarjar, aplicar ventosas e arrancar dentes.

Como as distancias entre vilas ou povoados eram muito grandes e a comunicação nula, qualquer um tentava curar e de qualquer maneira; praticavam a cura entendidos, os curiosos e os curandeiros. Os médicos dos indígenas eram os pajés e, só mais tarde, quando ganharam confiança, aceitaram a catequese dos jesuítas.

O mestre-cirurgião ensinava a arte a alguns jovens e dava-lhes o título de aprendizes bem como casa e comida em troca de ajuda nas operações durante a aprendizagem. O trabalho do cirurgião, então, consistia, de modo geral, em amputar, ressecar, desarticular, reduzir luxações, ligar artérias e veias, pulcionar e lancetar abcessos e tumorações. Deve-se lembrar que a anestesia ainda era desconhecida.

Naquele tempo, a sangria foi grande arma para todas as doenças, fossem quais fossem os sintomas apresentados; para a medicação básica prescreviam-se sangrias e purgas.

A recompensa pela cura consistia geralmente em espécies pelo preço ajustado: algumas mãos de milho, “um quintal de algodão”, panos, açúcar, galinhas etc. Na época seiscentista havia constante falta de numerário e as mercadorias valiam moeda.

Por falta de caminhos, nem se fala de estradas, viajava-se ao longo do litoral em canoas e embarcações improvisadas. Alem da falta de caminhos, não havia meios de transporte por terra; para dentro dos povoados usava-se o burro, o boi ou o dorso de escravos.

A política metropolitana impedia as comunicações pelo interior, o que atrasava ainda mais o surgimento de estradas. Ordenava-se el-rey ao regimento de Tomé de Souza que para trabalhos pesados dava-se preferência aos escravos africanos.

O cristão-novo quando não comia era denunciado ao visitador ou comissário de fazer “jejuns judaicos”, como tantos o foram nas “denunciações e nos processos dos Santo Oficio em Portugal.

Embora pareça incompreensível para muitos que nunca abandonaram sua terra que alguém perseguido possa ainda sentir saudades do passado, do lugar onde sofreu, e não ficar feliz de ter deixado tudo para trás, deve-se compreender que todos, ou quase todos os emigrantes sofrem longos anos de adaptação, ficam deprimidos e, às vezes, nunca se conformam com a profunda mudança da sua vida.

Por quase todo o séc. XVI, enquanto não foi descoberto ouro, poucos se fixaram na Nova Terra. El-Rey distribuía a terra da Colônia a donatários, muitos dos quais nem se deram ao trabalho de conhecer seu presente régio e continuaram no reino, mandando em seu lugar outros cuidarem das terras de além-mar.

D.Duarte Pereira reclamava a el-rey: “mande todas as pessoas a que deu terras no Brasil que venham povoar e residir nelas…. ou já que não vem, ponham em suas terras pessoas autas e suficientes e ouvidores que entendam e saibam o que hão de fazer homens de por aí, que estes tais não fazem, mas desfazem no bem que se deve fazer”.

Também Tomé de Souza, em carta de 1-º de junho de 1553, escreve: “V.ª deve mandar que os capitães próprios residem em suas capitanias e quando isso não for possível, ponham pessoas que V.A seja contente, porque os que agora servem de capitães, não os conhece a mãe que os pariu”, exemplificando com o caso de Ilhéus, onde fora obrigado a demitir o dirigente, porque é “cristão-novo e acusado pela santa Inquisição”.

D. João III, para povoar a nova terra, não só não escolhia os povoadores, mas também incentivava os homiziados o condenados por “maus feitos” de virem para o Brasil.

Com a carta de Évora de 25 de setembro de 1534, el-rey prometia que os foragidos da lei podiam permanecer no Brasil sem serem molestados, “salvo”, dizia a carta, “os culpados de heresia, traição, sodomia e moeda falsa”.

Cada capitania era declarada de Couto e homízio, e ninguém poderia, portanto, ser nela perseguido, em virtude de crimes e delitos anteriores. Muitos sentiram-se incentivados e “assim o Brasil tornou-se atração e refúgio de expiação da escória repelida da metrópole, valhacouto de banditismo emancipado em hordas de ladrões, assassinos, moedeiros falsos, condenados da justiça e mulheres de má vida. Que cuidados de saneamento poder-se-ia esperar de tão baixa importação humana?

É admirável que, apesar da presença de tão maus elementos, conseguiram os cristãos-novos tornar-se dono de engenhos, exportar açúcar e enriquecer os sempre esfomeados cofres portugueses.

Por isso se compreende por que os cristãos-novos, para salientarem o quanto se destacavam dos homiziados e bandidos que povoavam a colônia, apresentavam-se: “cristão-novo com toda a honra”.

Compartilhe!